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Tuareg

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  O deserto não mede esforços para ser ele mesmo. Seco, árido, arenoso, perene. O deserto brinca com as horas. Machuca o tempo, fá-lo dobrar. Nas dobras do tempo, a areia assa, faz dodói. É sua vingança por ser aprisionado nas ampulhetas dos homens. Escorre deserto, sonha praia, securas. O bramido do urso perde a força ao subir e descer as dunas. Assim como suas pegadas, se apega e se apaga com o Vento. Os fractais areentos brilham quando vistos de perto. De longe, miragens. As garras do urso não fazem frente ao deserto. A areia escorre entre seus dedos, seja um carinho, seja uma patada. O urso não consegue morder o deserto. Nem amá-lo.  O deserto é lindo na foto, tem nuances, contrastes. O urso é fofo na foto, sua pelagem macia e fofinha. O deserto parece não acolher o urso. Por mais que tente, o urso não consegue mergulhar no deserto. Parece que o deserto ama o sol que reflete. Sem o sol, o deserto é gelado. Somente a chuva consegue unir o urso ao deserto. Semente quando est...

Indizível condição verbal

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Há espera em toda paterninade. Há saudades indizíveis. Paradoxais sentimentos, urdidos ou ardidos pela nossa imaterna circunstância, estapafúrdia. Vivo me remendando, a duras penas. Crítico cruel de mim mesmo, não dou tréguas para minha inaptidão. Quero ser cada vez mais sensível, terno, cuidadoso, carinhoso, precisando demonstrar que o ser paterno marca a cisão, alude o mundo e seus perigos, incita ao voo para fora do ninho.  Minto. Quero-as aninhadas, comigo, aprendendo a cozer a rotina no cotidiano sem graça da vida comum. Com duas, com minhas três. Firo-me na falta.  Hoje, deitado do lado, vendo a mais nova ouvir estória antes de dormir, luo-me. Os japoneses tem uma coisa bonitinha demais: colocam "chan" (lê-se [tchan]) depois do nome, ao citar a criança, para demonstrar que estamos nos referindo à filha pequenina. Maria-chan. Maria-chan sentadinha no travesseiro de perninhas abertas, para que a mãe pousasse a cabeça no mesmo travesseiro, um quase colo deitada na cama, co...

Acordeom

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As horinhas de descuido aguimarantam-me.  A foto tenta conter a música do acordeom de meu pai. Não consegue. Ouço-a, o, consigo ouvir seus dedos nas teclas do acordeom pianado, nos botões: acorde.  Costumo dizer que o Vento é metáfora de Deus. Não o vemos, mas o identificamos, por meio das folhas nas árvores, da saia da menina, dos cabelos no rosto, carinhos envolventes.  Meu pai faz do vento música. Ele fole, eu brasa. Foi assim que passei minha infância: ensaiando ouvir. Aprendi. Com 11 anos, ele dava aulas de acordeom em Teófilo Otoni. Hoje, com quase 80, se senta no palco com crianças do Colégio Santo Antônio, em Belo Horizonte, para tentar mostrar para elas que há asas de borboleta em todo casulo musical. Vovô Toi deu aulas de música para os filhos dos caseiros da região de Macacos - São Sebastião das Águas Claras, onde tinham uma gleba de terra. Minha mãe dava aulas de artes para as crianças, alfabetizava os adultos, ele dava aulas de música. Presépio vivo de natal....

Faltando um pedaço

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 Da janela observo um avião que passa no céu nublado de fim de tarde, algumas nuvens carregadas, outras que viajam leve, buracos no espaço. Azul, amarelo, cinza. Movimento do vento.  Ouço Hamilton de Holanda tocando Djavan, lembro do Parkinson do Djavan, lembro que cantei uma música dele no dia do meu casamento com a minha primeira esposa. Vidas passadas. Uva passa. A música me lembra que é preciso insistir, que ninguém vai bater aqui, que ela soa um pouco e se vai, vira lembrança. A música é como a vida. Termina. É majestosa, envolvente, tem seus picos, se vai. Por quanto tempo Hamilton de Holanda vai colher o benefício de seu Grammy? Ele vai morrer como cada um de nós que não temos Grammy. Suas gravações não sei. Sua música pode ser eterna enquanto durar. Vinicisses. A tarde não se esquece de me lembrar que a maior parte de sua palavra é incômoda. Não associo a palavra a paixão. Associo ao fim da fogueira, preste às cinzas. Minha filha mais nova entra no escritório e coloca ...

Alerta de Spoiler: há palavrões neste texto de merda

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 Talvez seja sintomático pensar que a melhor coisa que se pode querer hoje em dia é que seu texto viralize. A etimologia da palavra me dá urticária, coceira, alergia, comi-chão. Viralizar é espalhar como um vírus.  Por isso, via de regra, as pessoas pensam em fazer vídeos ou postagens para as mídias sociais que se propaguem ad infinitum. É claro: isso quereria dizer que essas pessoas são "geradoras de conteúdo".  Um saco de monosialotetraesosilgangliosideo pode ter muito conteúdo. Depende do tanto que você comeu um dia antes. Confunde-se, portanto, a palavra conteúdo como sinônimo de algo importante, ou bom, ou preciso, ou necessário. Há excelentes conteúdos e há verdadeiras piperidinoetoxicarbometoxibenzofenona vestindo a roupinha de "conteúdo". Eu não sou obtuso a ponto de não perceber a importância da fuga para quem se piperidinoetoxicarbometoxibenzofenona no trabalho, se dimetilaminofenildimetilpirazolona na sociedade, é excluído de muitas das ben...

Deus abençoe o Jaro

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 Não sei como dar título a esse texto. Acabei de ouvir novamente Swami Jr. e Tabajara Belo no episódio Aquidistantes 7, coloco o link aqui na postagem. Aliás, sugiro que clique no play se tiver interesse em ler o resto do texto. É a segunda vez que vejouço essa gravação. Na verdade, a terceira, porque é a segunda vez agora que vejouço enquanto escrevo. Quarta.  A primeira vez que ouvi não estava preparado para ela. Não me bateu como hoje. Curiosamente, isso me lembra do meu trabalho de doutoramento na Universidade do Porto, onde tento sofridamente ainda querer provar que a comunicação está mesmo no receptor, e que todo mundo estava errado quando propôs os modelos de comunicação que aprendi na faculdade, ainda na década de 90. Coisa de menino que não aceita que o sonho acabou, que foi todo mundo pra casa e ele está só, chorando sozinho à noite sentado no meio fio. Meu fio meio é filha. Filho-me quando digo todos os dias para minha mãe que a amo. Filho-me quando converso com meu...

Rascunho

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 Já faz algum tempo que tenho tentado escrever, mas não passo de rascunhos. Hoje, resolvi colocar algumas coisas aqui para que sirvam como prova.  Gostaria de ter escrito prova com seu sentido gostoso, mas escrevi desgostoso.  Há muitos dias não falo com minha filha mais velha, Beatriz. Ela me bloqueou no whatsapp - sabe, né, quando nem conseguimos ver a foto da pessoa, e nossas mensagens não são entregues... É assim. Cerca de 20 dias atrás conversei com ela, expliquei que era difícil essa situação, mas ela continua a ver o mundo com os olhos da sua mãe. Nenhuma das duas me dá notícia. Essa é a guarda "compartilhada" de que fala a Justiça dos homens. Não vou ficar enchendo essa página com minhas lamúrias e muito menos com as provas que tenho (e tenho uma infinidade delas, todas datadas, catalogadas, devidamente, para na hora de mostrar para quem é de direito), vou apenas fazer um rascunho.  No documentário A Morte Inventada que você pode assistir no YOUTUBE  (o ...

Canteiro

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Cromossomos metade, descubro-te cada dia inteira, em tua porção nova e desconhecida. Reveladora.  Brava e triste. Alegre e risonha. Ousada e solerte.  És o agora, em tua beleza fractal disruptiva. Perene em tua mudança, és a própria transformação. Derramas a porção de linguagem que em ti sobra, mesmente tu tua mãe, até calada. Caras e bocas, interjeições do existir: Maria escorre si mesmo enquanto o entusiasmo toma forma. Rompe.  Até quando a terei em meus braços? Hoje.  Até quando serei um teu colo? Agora.  O tempo do sempre ri de mim, frágil que sou, ignorante em julgamentos meus, primitivos. Presto à atenção.  Medito Maria, Beatriz que não é. Filhices. Maria canta para a Lua. “Sua linda”, define-a. Maria entra no jogo, adulta. És sabão na água da banheira, coentro na comida de quem gosta, rajada no pano da nossa nau: a cantiga em teu nome combina com a vastidão de teu primeiro e óbvio significante. Talvez mesmo a ária de uma sereia. Maria ama mergulhar. ...

Amor em fluxo

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O rosto de quem já caminhou bastante, mas não o bastante e a expressão de quem ainda tem muito a caminhar, sendo, ela mesma, o Caminho a seguir.  Essa foto foi tirada quando minha segunda filha, Maria, tinha apenas 11 dias de vida depois de seu nascimento, no dia 31 de dezembro de 2019. Eu havia feito a peregrinação em doação no Japão por mais de uma centena de pessoas, mais de uma centena de pedidos e tinha voltado, mudado, transformado, mexido. Minha filha me falava de novos medos. De outra paternidade, de um caminho mútuo, de desafios e esperanças. De certezas, confirmações, entrega. Ela chegou sem surpresas, surpreendentemente ela, Maria, a mudar o mundo meu, da mãe, da irmã, de tanta gente. Demorei 47 anos para me preparar para sua chegada e finalmente estava pronto para caminhar com ela, com todos os meus tantos defeitos e dúvidas. Hoje, debaixo ou do alto dos meus 49 anos completos há alguns dias, olho para a paternidade como olho para meu quimono.  Comecei a fazer Kara...

Pedras que falam

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foto de Alquiminera: exposição de @leosantanaescultor, de 1994. Somente depois que a lama começou a secar dentro de mim, tateei o solo frágil por onde caminhar e avaliar os destroços que ficaram expostos e ocultos. Ai de mim, mineiro por natureza. Daqui do Porto parto em cacos, restos, formas disformes e questionamentos sujos, turvados por pensamentos dúbios de compaixão e raiva, angústia e dor, hematita a ser arrancada do peito. A pedra do caminho de Drummond era de minério de ferro. Pobres de nós que não sabemos ouvir o saber dos artistas. Em 1994, o escultor Leo Santana já nos contava em sua exposição nos córregos de Macacos - São Sebastião das Águas Claras o que estava por vir. Mas a arte é só um saber menor: o que importa é a razão, os cálculos dos engenheiros, a precisão dos economistas, a ciência dos matemáticos, a proporção dos investidores. O escultor que magicamente sentou Drummond no banco de Copacabana não pode ser mais preciso que a aritmética do Homem q...

Freddied

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SimplesmenteeunãoseicomofazerparadizeroquesentivendoofilmeBohemianRaphsody. Foialgumacoisamágicodescritivadeumsonhoqueficounomeiodocaminho. Pensoemcomodizerissodeformamaisbrandaoudeformamaissimplesoumaisexplicativamassimplesmentenãomevemoarparaqueeurespireepossaparardereviveraperdadeumídolodeamigosdesonhosdepoesiaenfim. Émuitodifícilassociaradificuldadederelacionamentocomopaiaquestãofamiliaromedodomundoomedodaperdaosamigosquesevãoasfacadasnascostasaspuxadasdetapeteosonhodeummundoquesimplesmentenãoexisteasexpectativastodassobreoamorasdorestudoissotudojuntovindonumaondaderockandrollmisturadocomopassadoquesefoieotempodosemprepresenteemnossaancestralidadeatemporal. Eutenhocertezaquenãoestoumefazendoentendermascomoestousemarficadifícildizeroquequeriadeummodomaisordenadoousimplesouracional. Avidaasvezesatropelaagentemaisdoqueaspalavras.Asquesaemeasquenãosaem. Parecequenessefilmeoqueficaengasgadovememformadeemoçãolevandoagenteparaabeiradadoprecipícioquenoslembraque"àsvezeseudesejava...

Parta, Parto, Porta, Porto

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Eu porto. Saudade. Levo comigo. Parto sem dor. A casa do peregrino está fundada em suas botas. Alpendre. Sopro distante, brisa do mar. As ondas do outro lado do oceano tem novo canto quando fazem carinho na praia. Os seixos rolados repercutem percussivos quando rolam em meus olvidos. Baixa, Freixo, Chiado. Arrulham, Alhures. As gaivotas latem descansando nos telhados. Miam quando partem em voo. Os azulejos aluzejam meu espírito. Há eiras e beiras. Há ferros retorcidos nas sacadas. Amadeiro-me. A passagem de volta é olhar para dentro. A passagem de ida é sentir o vento. Eu voo. O sorriso distante é dentro, a risada menina é dentro, a raiz que cresce é dentro. O balanço é gostoso quando a gente amarra no galho firme e distante do chão, na copa que faz sombra mesmo em dia nublado.

Qual Quer.

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Não quero ir, minha BeBê. Olhos, seus olhos, castanhos, amendoados, melados, devidamente adornados emoldurados em cílios perfeitos. Melo-me. Sou a busca por sua risada, sua compreensão, afeito afeto, desperto, eu qualquer. Um seu, um pedido, um perdido, uma súplica. Me ame mais, filha, porque preciso. Por favor. Você me faz acreditar na vida, me faz acreditar no mundo, me faz acreditar no ser humano, no Bom, no Bem, no Belo. Você, tão você, tão ubiquamente nada eu, melhorado, melhorada, em perfeita sincronia com o que tem que ser. Seja. Cereja. Já não zarpo, já não parto, partido há sete anos e meio, não mais me completo sem sua cabeleira ou sua delicada forma de ver e ser meu mundo. Sou um turista perdido dentro de mim mesmo. Sou alguém que quer ser melhor por sua causa. Sou quem quer salvar o mundo por sua causa sem ser herói. Seu cheiro, seu humor. Sua risada menina. Seu encanto é minha rede. Talvez até de proteção. Me salve, minha filha. Sou o erro mais obtuso q...

Medo

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Heuje, caminhando para o mercado central, chorei duas vezes.  Não há medida para saudades. Minha incompetência aposta corrida com o desejo de mudança e vence a disputa. Sou um juiz forjado no tempo. Minha ganância moldada pela cultura católica, minha ira sufocada pela doçura de minha mãe, minha revolta domada por toda leitura.  A mansidão amainou a tempestade. Gelei-me. Não penso mais em zarpar, não mais em saltar, minha espada, embainhada, enferruja com o pranto dos momentos de solidão profundos. Colhi as velas no mar aberto. Me sentei no calado do barco, no calado da vida, nu, calado Davi. A soma dos pesos não permite balanças. Quando distar-me terei ido. Findo, derrotado e re-partido. As chagas do berço dóem cicatrizes húmidas. Os queijos caros e premiados que comprei no mercado central tem fungos invisíveis.

Como com viver sem.

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não canso de me querer escrever iletrado, tenho colecionado silêncios em mim, de finições e recomeços, ex-cutas zelo substantivo, zelo verbo:  a etimo-elegia do ciúme pedra fito, zentimento,  o eusquecer universamente o cheiro da minha filha  é mesmo o tsunami do Cosmos. 

Travessias do Tradizível: João Guimarães Rosa e Juraci Dórea

--> REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AQUINO, S. T. de. Sto. Tomás de Aquino - Vida e Obra. Tradução Luiz João Baraúna. São Paulo: Edipro - Editora Nova Cultural, 1996. BARTHES, R. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 2003. ___________. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002. BITTENCOURT, R. L. de F. E SCHMIDT, R. T. Fazeres Indisciplinados: Estudos de Literatura Comparada. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013. BIZZARRI, E. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano. 2. ed.; São Paulo: T. A. Queiroz: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,1980. BOLTER, J. D. e GRUSIN, R. Remediation – understanding new media. Estados Unidos: MIT Press, 2000. BRAGA, J. L. Mediatização Como Processo Interacional de Referência. Artigo publicado na XV COMPOS, GT Comunicação e Sociabilidade, 2006. CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Unesp,1999. COMPAGNON, A. O demônio da te...