Acordeom


As horinhas de descuido aguimarantam-me. 

A foto tenta conter a música do acordeom de meu pai. Não consegue. Ouço-a, o, consigo ouvir seus dedos nas teclas do acordeom pianado, nos botões: acorde. 

Costumo dizer que o Vento é metáfora de Deus. Não o vemos, mas o identificamos, por meio das folhas nas árvores, da saia da menina, dos cabelos no rosto, carinhos envolventes. 

Meu pai faz do vento música.

Ele fole, eu brasa. Foi assim que passei minha infância: ensaiando ouvir. Aprendi.

Com 11 anos, ele dava aulas de acordeom em Teófilo Otoni. Hoje, com quase 80, se senta no palco com crianças do Colégio Santo Antônio, em Belo Horizonte, para tentar mostrar para elas que há asas de borboleta em todo casulo musical.

Vovô Toi deu aulas de música para os filhos dos caseiros da região de Macacos - São Sebastião das Águas Claras, onde tinham uma gleba de terra. Minha mãe dava aulas de artes para as crianças, alfabetizava os adultos, ele dava aulas de música. Presépio vivo de natal. Presépio vivo de todo o dia. Por muitos e muitos anos. Assim como a música encontra os espaços vazios dos átomos para ser ouvida de dentro da foto, ela encontra o vazio do espaço-tempo para soar da linha onde parece presa, como corda de um violão. 

Quando pinçamos a linha do tempo com atenção, vibra a música que soa adormecida no sempre. Observe novamente a foto. Você pode escutá-la, como eu.

Talvez você não ouça meu pai tocando Índia, com minha mãe cantando e ele fazendo segunda voz. Mas eu ouço. O acordeom é o instrumento mágico pelo qual meus sonhos foram embalados. Seu som desembalou minha mais genuína alegria e acalantou a mais profunda de minhas tristezas. É o que chamam "vida".

Nasci das cores das tintas de minha mãe e do vento de meu pai. Não houvesse eu artesanado por aí, esquisitisses minhas, mesmas. 

O inverno traz belezas indescritíveis em qualquer hemisfério. Basta olhar para vento e sentir o dentro.



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