Amor em fluxo



O rosto de quem já caminhou bastante, mas não o bastante e a expressão de quem ainda tem muito a caminhar, sendo, ela mesma, o Caminho a seguir. 



Essa foto foi tirada quando minha segunda filha, Maria, tinha apenas 11 dias de vida depois de seu nascimento, no dia 31 de dezembro de 2019. Eu havia feito a peregrinação em doação no Japão por mais de uma centena de pessoas, mais de uma centena de pedidos e tinha voltado, mudado, transformado, mexido.

Minha filha me falava de novos medos. De outra paternidade, de um caminho mútuo, de desafios e esperanças. De certezas, confirmações, entrega. Ela chegou sem surpresas, surpreendentemente ela, Maria, a mudar o mundo meu, da mãe, da irmã, de tanta gente. Demorei 47 anos para me preparar para sua chegada e finalmente estava pronto para caminhar com ela, com todos os meus tantos defeitos e dúvidas. Hoje, debaixo ou do alto dos meus 49 anos completos há alguns dias, olho para a paternidade como olho para meu quimono. 

Comecei a fazer Karatê quando tinha 9 anos de idade. Minha filha mais velha está com 11 anos. É ela nessa foto com 9, recebendo a faixa branca do pai.


"Um dia em sua vida", diz a música que foi sucesso na voz de Michael Jackson, a de Sam Brown e Renee Armand. Essa música fala para mim de um jeito especial sobre minhas filhas. Sobre como quando estou com elas. Sinto-me responsável por um dia apenas em suas vidas. O dia que estou com cada uma delas. 

É difícil compreendermos o Tempo como o tempo que tem, que é. Seu sempre sendo, infinitamente finito e veloz. Pisco e Beatriz é uma mocinha. Inspiro e meu colo é pequeno para ela. Meus braços não conseguem carregá-la por quilômetros, mais. Sinto tê-la que colocá-la no chão para andar, para caminhar, por conta própria, mesmo sendo o peregrino que sou. Mesmo sabendo que ela veio aqui para isso.  Meu apego talvez seja maior que minha paternidade. Meu amor egoísta queria tê-la nos braços novamente e por tempo maior que o sempre do agora, do dia, do segundo que posso, que consigo. 

Acredite, e é difícil viver isso com Maria, mesmo ela estando comigo em outra situação, morando comigo, vivendo comigo, estando comigo de manhã, de tarde, de noite. 

Quando entardecer, quero estar com as duas, se não nos braços, no colo. No afago, no afeto. Nos acordes dessa música que fala que passo, que vou, que voo. 

Será que se lembrarão de mim? Será que irão me sentir quando chamarem e eu não estiver mais aqui? 

Carrego-as dentro o tempo todo, em cada célula de meu corpo, em cada expiração, em cada expiação. Penalizo-me por ser menos que merecem, mesmo sabendo que está tudo bem. E que elas me escolheram. 


Iemanjá cuida das duas, independentemente da minha presença. Seus passos são guiados pela Mãe Terra, pela Mãe Divina, pela Mãe Suprema - diz o pai que não pode ser mãe.

É difícil compreender que em cada passo reside todo o Caminho. Que cada vez que olho para elas, é meu amor todo que as recebe. E é louco perceber que meu bem-querer, por maior que seja, por mais que contenha toda gota do oceano, todas as estrelas do céu, todo escuro do mundo, todos os sonhos sonhados, tudo, não representa nem um tiquinho da grandeza das duas. 

Eu sei: você pode ver nessa mãozinha fechada na foto da praia que Maria carrega nessa mãozinha fechada mais do que posso ser como homem, como pai, como ser humano, como sonhador. Aí, enquanto imprimia seus primeiros passinhos de todos, na costa do sul da Bahia, imprimia também suas pegadas inexoravelmente em todo o meu futuro, em tudo o que eu viveria dali pra frente. 

Maria e Beatriz para sempre nesse momento. Enquanto eu respirar e bem, bem depois que eu tiver virado átomos de estrelas no cosmos, numa fogueira de São João de qualquer noite fria de um junho qualquer, de algum ano impronunciável.

Quando chamarem meu nome, estarei com elas.



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