Faltando um pedaço

 Da janela observo um avião que passa no céu nublado de fim de tarde, algumas nuvens carregadas, outras que viajam leve, buracos no espaço. Azul, amarelo, cinza. Movimento do vento. 

Ouço Hamilton de Holanda tocando Djavan, lembro do Parkinson do Djavan, lembro que cantei uma música dele no dia do meu casamento com a minha primeira esposa. Vidas passadas. Uva passa.

A música me lembra que é preciso insistir, que ninguém vai bater aqui, que ela soa um pouco e se vai, vira lembrança. A música é como a vida. Termina. É majestosa, envolvente, tem seus picos, se vai. Por quanto tempo Hamilton de Holanda vai colher o benefício de seu Grammy? Ele vai morrer como cada um de nós que não temos Grammy. Suas gravações não sei. Sua música pode ser eterna enquanto durar. Vinicisses.

A tarde não se esquece de me lembrar que a maior parte de sua palavra é incômoda. Não associo a palavra a paixão. Associo ao fim da fogueira, preste às cinzas. Minha filha mais nova entra no escritório e coloca sua mãozinha pequena de 3 anos e 10 meses no meu ombro, para mostrar suas unhas pantera-cor-de-rosa pintadas pela mãe. Levanta o pé e coloca no meu ombro, pra mostrar que as unhas do pé estão da mesma cor. Pergunto se eu posso dar um beijo nela e ela sai do quarto sem olhar para trás. Ela cedo, eu tarde. 

O azul se vai. Fica um pouco de amarelo e um tanto de tom de cinza. A pantera-cor-de-rosa também já saiu do quarto levando a menina, a esperança e a lembrança de que tenho outra filha, uma que a mãe fez questão de violar, para que não conversasse comigo, não respondesse minhas mensagens, não atendesse meus telefonemas, não desse notícias. Envio o pouco que tenho e não sei sequer se está viva. Porque não há honra na maldade. Não há ética na perversão. O conto infantil somente existe na infância, enquanto a esperança dá comida para o passarinho da gaiola da alma. 

O gato lambeu as botas sujas da rua. A mãe da menina apodrece por fora, enquanto adoece por dentro. Só fui capaz de curá-la uma vez, não sou capaz de curá-la novamente. Há outra vida agora, outros dedos, que digitam a sutileza de um movimento que poderia ser um carinho. Já fui bom em carinhos. De vários tipos e cores, de várias texturas, sabores. Hoje meu tato serve para se perder no saponáceo da vasilha que esfrego na cozinha do hábito. Na tecitura da espera. Dormências. 

A música de Hamilton ajuda um pouco. É um interlúdio do silêncio. Putin nunca ouviu Hamilton de Holanda. Os assassinados da rave Supernova Universo Paralello Edition, em Israel, não sabem que matar os sonhos de uma criança é um crime hediondo. Minha filha volta e me pergunta se eu gosto de crocodilo grandão. 

Coloco os fones nos ouvidos dela e ela sorri, seu rosto se ilumina. Me pergunta: - Qual que é essa?

Respondo: - Faltando um pedaço.



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