Caminhando com a Ana
No primeiro passo, descendo do avião ainda na conexão em Madri,
começou a nossa divertida viagem com a pergunta da funcionária da Iberia,
parceira da Latam, para a senhora que levava seus pais já idosos para a Europa:
– Se quedan en Madrid?
E ela:
– Mãe, ela tá perguntando se você vai querer a cadeira de rodas.
Foi nossa primeira gargalhada. Da Ana e minha. Fomos juntos para
Lisboa, para de lá pegarmos um ônibus até Fátima, prestarmos nossas graças no
ano jubilar, e iniciarmos nossa jornada até Santiago de Compostela, a pé,
perfazendo 500 quilômetros (505km em um dos GPSs, 527 no outro).
Foi uma viagem maravilhosa e foi uma viagem maravilhosa... Por mais
que as previsões dissessem do frio rigoroso que castigaria Portugal no mês de
março de 2017, e que andaríamos debaixo de chuva durante os 20 dias de jornada,
não foi exatamente isso que aconteceu. Era pegar o Caminho e a chuva dava
trégua, quando não abria um sol das regiões temperadas, iluminando o rosto da
Ana, secando minhas poças e nos trazendo o calor necessário à crença. Claro,
tivemos dias até de chuva de granizo diretamente no rosto, momentos de 4º de
frio e ventos desafiantes, mas nada que fizesse o medo suplantar o desejo, a
esperança, a vontade, o encanto. Nas florestas úmidas da Galícia demos as mãos,
ao escalar as pedras de um e de outro, superar o lodo que cobria as frestas das
minhas cicatrizes, até chegarmos na clareira do pacto mútuo, onde o céu se abre
para a compreensão da natureza nossa.
Ana Guimarães puxou o famoso avô materno, Soares da Cunha: ela é
trova desafiante, verso acabado que rima, rica. Ela puxou o avô paterno: sabe
como ninguém reunir os pares brindando em seu nome, mesmo quando já não está.
Tem a doçura da avó que não conheci e a sensibilidade da avó artista plástica
que canta e encanta. Ela definitivamente não cabe em si. Tanto que grita para
sair, porque foi feita mignon, por natureza. Guerreira, forte sem medida, Ana
desafia a desistência. Palíndromo de si mesma, é coerente na simplicidade
complexa de existir e insistir. Virou madrinha do futuro casal de jovens
alemães que trouxemos em nossos corações pra casa, o Martin e a Giorgina.
Cansamos. Subimos muitas montanhas juntos, descemos muitas montanhas
juntos. Ela me empurrou montanha acima e me ajudou montanha abaixo. Venho
tentando tomar conta da pequenice dela, hábito ligado ao macho que habita em
mim, e dar conta das suas sutilezas, rito ligado à fêmea que cultivo cevando em
mim.
Paiciências.
Entre muitas risadas, cuidamo-nus:
não há disfarce que permaneça luzindo intacto depois de tantos quilômetros de
mãos dadas. Entrelaces. Nossos silêncios discursaram perguntas. Nossas buscas
amanheceram, ninamos nossos desejos, brindamos o afeto de caminharmos por
tantas pessoas que precisam. Na bênção do padre André, na saída de Fátima, ele
pontuou que caminharíamos por nós, por quem conhecemos e por quem sequer
conhecemos. Virou nosso mantra, nossa frase diária. A força de uma peregrinação
na quaresma transcende a compreensão de quem não tem fé, e acha que é só uma
viagem de férias mais barata que as outras.
Oremos.
Oramos. Rezamos pra Fátima, para Santiago, para nossa família.
Caminhei com minha filha no colo, caminhei com os amigos no pensamento, caminhei
com os desafetos no coração. “Tudo muda, nada perdura”, já dizia Heráclito. As
dores me acompanharam e o sofrimento me fez emotivo. O prazer andou comigo e a
paixão me fez recolhido. Mas soube rir, chorar, inspirar, expirar. Os passos
mastigavam os pensamentos que insistiam em caminhar conosco. Até que paz. Até
que bem.
É uma pena ter que voltar. E me descobrir cada vez mais peregrino de
mim mesmo, estrada infinda em busca do que passa, do que vai passar, do que
paradoxalmente me importa e se vai, fluxo perene desse efêmero existir.
Sou grato a Ana, seu caminho, nosso encontro, nossos passos. E que
Deus tenha ouvido minhas tantas preces.
Quanto a você, mesmo se não puder me ouvir, ouça pelo menos essa música, vai lhe fazer bem.
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