Passador




Entro no quarto de Beatriz e lá está ele.

Ao lado do porquinho de moedas que junto pra ela todos os dias. Um passador, esquecido em sua passagem por aqui.

Ele me fala que ela esteve aqui. Ele me fala de seus lindos cabelos desgrenhados de criança. Ele me fala de seus cabelos cuidadosamente arrumados para ir ao ballet. Ele me fala de seu sorriso. Ele me fala de seus gritinhos infantis e de suas sobrancelhas arqueadas ao me perguntar inocências. Ele me fala do Tempo, da pergunta quando ela estará aqui, da resposta da Saudade e do abraço vazio que dou em seu quarto, toda vez que entro nele.

Deixado displicentemente no que pode ser considerado uma cômoda, o passador de minha filha.

O passador de minha filha.

A diarista já quis guardá-lo, um cem número de vezes. Ela guarda, eu volto com ele para o lugar do esquecimento. Eu volto com ele para o lugar da lembrança. Eu volto com ele para o lugar do como se fosse ontem.

Ele me lembra que ela esteve aqui. E o jeito como foi deixado ali faz com que pareça que ela acabou de sair. Que seu eu correr e olhar no corredor, ainda posso vê-la saindo pela porta, a tempo de gritar:

– Filha! Volta.

Às vezes, penso no passador virando passarinho e saindo voando pela janela. Eu, gaiola aberta, euzinho, eu ninho. Aí passa.

Tem coisa que passa.

É só um passador. E ele, ali, passador.




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