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Passador

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Entro no quarto de Beatriz e lá está ele. Ao lado do porquinho de moedas que junto pra ela todos os dias. Um passador, esquecido em sua passagem por aqui. Ele me fala que ela esteve aqui. Ele me fala de seus lindos cabelos desgrenhados de criança. Ele me fala de seus cabelos cuidadosamente arrumados para ir ao ballet. Ele me fala de seu sorriso. Ele me fala de seus gritinhos infantis e de suas sobrancelhas arqueadas ao me perguntar inocências. Ele me fala do Tempo, da pergunta quando ela estará aqui, da resposta da Saudade e do abraço vazio que dou em seu quarto, toda vez que entro nele. Deixado displicentemente no que pode ser considerado uma cômoda, o passador de minha filha. O passador de minha filha. A diarista já quis guardá-lo, um cem número de vezes. Ela guarda, eu volto com ele para o lugar do esquecimento. Eu volto com ele para o lugar da lembrança. Eu volto com ele para o lugar do como se fosse ontem. Ele me lembra que ela esteve aqui. E o jeito como foi deix

Perdão Pascal

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Meu ovo de páscoa é de torresmo de barriga. Com recheio de Heineken. Que eu saiba, é só uma pessoa que vende ali no Padre Eustáquio e ele não é barato. Acredito que isso se deva ao mercado consumidor que é, de certo modo, restrito. Talvez por falta de conhecimento. Além do quê, imagino que a possibilidade da escolha da cerveja seja, no fundo, um empecilho à parte, que, segundo o rapaz que faz as encomendas, “isso defeculteia e muitcho”. Imagino que usar o verbo “defecultar” na mesma frase que “ovo de páscoa” é mesmo coisa defécil. Torresmo não é a felicidade em si. Mas é o que mais se aproxima no que se refere a excessos possíveis, tirando o sexo. No entanto, talvez não seja prudente relacionar o sexo à Páscoa, por mais puro que possa ser. Por mais que se trate de morte e ressurreição no ato em si, e de vida e crescimento pós ato, em alguns casos conceptivos. Já o sexo em si não é excesso. Mas em excesso, quando bem feito, ainda representa a felicidade possível. Uma espécie de Pásc

Um pau pra chamar de seu

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É preciso que algum estudioso faça um artigo de fundo sobre o pau de selfie.  Eu não sou estudioso e nem tenho conhecimento para isso. Aliás, nem pau de selfie eu tenho. Meu pau é outro. Oco. O pau de selfie é o falo contemporâneo. A ereção compartilhada.  Se dá assim: o pau de selfie fecunda o anonimato. Nasce o reconhecimento.  Filho legítimo do indivíduo com a sociedade, morre à míngua porque sua mãe é desnaturada. Ela não quer dar de mamar. Por isso, morre dias, horas, minutos depois, sem atenção, sem carinho, sem cuidados. Coitado. É preciso que alguém discorra sobre o pau de selfie. Coisinha fina que não faz canoa. Não bóia, não cutuca, não é pra toda obra, não escorrega, não protege, não faz calar. Não consola. Nem goza. Mas tá aí, pra cima e pra baixo pra todo mundo ver. Pau enorme, nosso pai? Eu tenho pena do pau de selfie. Porque de self ele me parece ter muito pouco. Não sei (mais) qual o limite do particular e do coletivo. Talvez es

Sirimim

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foto: Ana Guimarães San Bol.  Deus entrou pela janela do banheiro de madrugada.  O vento dizia Om e o Vazio entrou despreenchendo tudo.  Foi-se tudo.  Foice tudo. Banhei-me nas águas milagrosas de San Bol.  Eu caranguejo, sirimim. Ontem, massageio seus pés cansados de tanto Caminho em meditação. Descubro que eles estavam dentro d'água, banheira do amor. A banheira é de pedra, a água turmalina.  Vitrifique-se. O perdão clarifica o espírito, o amor ilumina a alma, a paz cristaliza o equilíbrio. Tornamo-nos um com o Caminho e o Vento.  Óh! Trigonal une verso! Há mar na banheira mágica de San Bol. E o Vento continua passeando na copa das árvores, mesmo quando não vejo. A Ave Maria na Banheira de San Bol me banhou o espírito, a fé e o Caminho. Sou grato a Peregrina Ana Guimarães.

Estátua

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– Raio congelante! E meu coração se aquece. Eis o mistério da fé. Coitada da Elsa. Mal sabe ela que pode congelar e ao mesmo tempo aquecer o coração de quem se ama. Minha filha adquiriu essa habilidade. Zap ! E pronto. Viro estátua. O Tempo ali não resiste. Kairoz toma conta de tudo. O mundo automaticamente entra em modo Stand By . Os passarinhos param no ar, o lixeiro para no ar, a bigorna para no ar, a fonte congela na foto. Para, Tempo! Por favor, não me deixe ir embora! Faça alguma coisa! Que vontade que nunca mais ela me fizesse a cosquinha ou o Boo-libertador ... Não coloco bateria nos meus relógios. É minha forma de protesto. E Beatriz a dizer ao Tempo que nos dê uma folga, que é preciso que ele não passe, pra ficarmos ali, sempreando, juntos, sorrindo, ou melhor, risando – como ela gosta de dizer. – Papai tá risando!, admira ela. E ri entusiasmo. Quando Deus dentro, paraíso fora. Elo. Daí ela pega a estátua, não importa o lugar que esteja, e começa a moldá-la. Mãos, pernas, b

Para Vó Fide

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Na foto Tia Yara - que fez ontem 90 anos "do joelho pra baixo", diz ela. Como se fosse hoje: a minha única lembrança de Vó Fide. Na varanda da casa da Rua Padre Virgulino, já com a entrada da casa pelo lado esquerdo, Vó Fide pegando um Papai Noel de chocolate no vaso de planta que servia de árvore de Natal pra me dar. De vovô eu me lembro muito mais. Mas de Vó Fide eu só tenho essa lembrança, desse dia, bem vívida em minha memória. E consigo sentir saudades. Muitas.  Outro dia, uma amiga me disse: “se houver saudades, quer dizer que houve amor”. Acho que ela tem razão. A única lembrança da minha amada Vó Fide eu passei meus 41 anos recheando com pedacinhos de amor que fui colecionando da saudade dos relatos sobre minha avó.  “–Bê-Bê-rê-Bê-Bê-de-vo-vó!”, ela dizia. E eu retrucava: “– De mamãe!” Gosto de pensar na alegoria da vida eterna como algo perfeitamente palpável por nós, hoje, em vida. Em cada filho, em cada neto, em cada descendente de Vó Fide

Foice

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Acordou triste. Tinha perdido o entusiasmo. Estava cheio de tudo. Precisava calar, precisava ouvir o silêncio, precisava descoisificar-se. A cheiísse de tudo não guardava espaço pra Deus entrar. Precisou cavar. Foi necessário jogar tudo fora, todos fora, conceitos fora, ideias fora, problemas e soluções fora, soluços fora, mágoas fora, sorrisos fora. Foram dias. Meses. Anos. Nós. Fomos, foram-se. Foi-se. Foice. Decepou tudo. Varreu. Passou pano. Deixou secar. Abriu a janela da alma. Abriu a porta do coração. E um dia, depois de muito tempo Nada, descoisificou-se finalverdadeiramente. E pode ouvir seu sangue, sentir-se pele, respirar o vazio do ar, descobrir-se inspiração e expiração. Coraçificou-são. Hoje, ouve passarinhos e escuta crianças. Na foto, Bê Sant'Anna no Caminho de Santiago em 2009