Questões de Linguagem e Tradução






As minhas aulas no mestrado acabaram. Posso voltar para a casa da minha filha, onde moro, em Belo Horizonte. Daqui, da ilha interna de Florianópolis, paro e penso. E elejo a primeira coisa que devo agradecer em minha passagem por aqui: o encontro com Yeo N’Gana.

Costamarfinense, magro, estilo corredor, das cambetas finas e compridas, voz grossa, sorriso maior que o rosto, maçãs do rosto bem salientes, olhos profundos, negro azul-marinho, Yeo é um irmão que ganhei depois de 42 anos de vida.
Moral, ética e inteligência de fazer inveja, Yeo é uma vara de bambu. Resiliente. Forte. Firme e absolutamente natural. Seu silêncio grita:

– “Quando você fala baixinho, nos ouvidos, a pessoa escuta com a alma.”, me disse um dia.

Aprendi muito aqui nesses 4 meses intensos de quase prisão domiciliar. Mas aprendi mais mesmo tentando Traduzir o meu novo irmão Yeo. Pra começar, foneticamente, seu nome é um Koan Zen Budista. Quando o chamo, pergunto por mim: “E eu?” A letra “e” é fechada na pronúncia, da mesma maneira que se pronuncia o “e” presente na palavra “eu”. É como se eu quisesse saber onde estou quando chamo aquela pessoa tão distante e tão próxima de mim...

Minha idiota ignorância não sabe distinguir bem o que precisa traduzir “ser da Costa do Marfim”. Ele mesmo, ao tentar explicar porque não fala tanto de si e de sua terra, disse a mim e a uma colega: – É difícil explicar. Se na Costa do Marfim temos 98 línguas, temos 98 culturas distintas, mesmo que próximas. Na minha ignorância cultural, a primeira coisa que me vem é que ele é africano, o que, segundo a Cadeia de Significantes e Significados Saussurianos começa a puxar um fio em minha mente na seguinte ordem: África, selva, bichos e riquezas minerais, exploração, escravidão, colonialismo, guerra civil, sofrimento, deserto, preconceito, culturas distintas, tribos, Mãe Natureza, ancestralidade, arquétipos, Terra... E eu?

É estranho pensar até em identidade sendo quem sou, morando onde moro, tendo as referências que tenho. Um completo vira latas, eu poderia assim me definir. Do lado da minha mãe, tenho desde suíço (minha avó Neuenschwander) que também tem avô negro, a judeu espanhol (Cabido, Soares de Moura) e do lado do meu pai, índio e português, sobretudo (Coelho). É meio como achar que na Espanha é tudo igual. Bascos, Valencianos, Catalães, Andaluzes, e por aí vai, acabam todos no mesmo saco. Como se no Brasil pudéssemos colocar todo mundo também no mesmo saco... Talvez seja minha vontade de igualdade e justiça que pense todo mundo como seres humanos, irmãos. Mas um olhar um pouco mais atento fragiliza o sonho utópico. É tudo muito estranho e tudo muito difícil de traduzir. E, nesse ponto, é como se chegasse Yeo pra selar paradoxalmente a diferença e a igualdade de um modo muito bonito e a necessidade de continuar percorrendo esse Caminho.

Talvez, porque seja mesmo a única forma de nos compreendermos e nos constituirmos humanos.

– “A vida é uma caixa incolor”, disse Yeo pra mim, na semana passada. Pelo que posso sorver, imagino que ele quer dizer que somos nós mesmos que vamos tentar traduzi-la, à medida que a colorimos. A Tradução é mesmo uma forma de abraço.

Mais sobre meu desconhecimento completo de Abidjã nos outros textos deste mesmo blog.



Comentários

Unknown disse…
Obrigado pela homenagem. O prazer foi todo meu !
Warken disse…
Lindo Bernardo!

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