A corda e a cruz



Ontem foi dia 22 de abril. Dia em que se comemora o Descobrimento do Brasil pelos portugueses.

Na Assembléia Legislativa de Minas Gerais inaugurou-se uma estátua de Tiradentes. Na verdade, o dia de Tiradentes foi antes de ontem, um dia antes, o feriado de 21 de abril. Dia de sua execução.

Os portugueses executaram Tiradentes.

Talvez a escolha do dia da execução de Tiradentes seja representativa pelo fato dele sim, ter conseguido sua liberdade ao deixar esse mundo.

Também sou um inconfidente. Não devo fidelidade ao que impera. O que impera é um mundo doente e sem justiça.

A mãe da minha filha, que é descendente de português, faz aniversário no dia da execução de Tiradentes. Este ano, o dia de Tiradentes caiu junto com o domingo de páscoa.

O domingo de páscoa foi antes de antes de ontem, dia 20 de abril. Na páscoa - palavra derivada de uma palavra hebraica que nos remete a "passagem" - comemora-se a ressurreição de Jesus Cristo. A passagem dele para o Reino dos Céus, a saída desse mundo doente e sem justiça para um mundo de liberdade.

Fui para o Rio de Janeiro para passar o feriado de páscoa e o feriado do aniversário da mãe da minha filha, ou melhor, o feriado da execução de Tiradentes. Estive lá de quinta a segunda.

Na foto, podemos observar a estátua formidável - e uso esse adjetivo em homenagem à minha avó Lygia, artista plástica que muito-muito admirava o trabalho do escultor que virá citado na sequência dessa frase - feita pelo artista plástico Leo Santana. Antes dela ser apresentada ao público, perguntei ao escultor:

– Leo, afinal de contas, como você fez pra chegar ao rosto do Alferes? Porque devem existir talvez uma centena de representações do Joaquim, né?


Ele me respondeu algo interessante. Que no final das contas, os mártires terminam com uma representação que se aproxima do rosto que carregamos em nosso inconsciente coletivo do rosto de Jesus Cristo. Que provavelmente, Tiradentes foi enforcado careca e sem barba. Porque era o que faziam com os presos por causa de piolhos. Mas não é essa a imagem que nenhum de nós carrega dele. Assim, a representação do artista foi mais coerente à fantasia da população que recebe a estátua e buscou ser fiel à altivez, à postura daquele que lutou por nossa liberdade. Nesse ponto, não foi o artista um inconfidente.


Joaquim é também o nome do meu advogado que me defende da doença e da injustiça do mundo. No mundo onde meu advogado vive, existe quem ache que um pai amoroso e uma mãe amorosa não tem direitos iguais. Joaquim também não acredita no que reina, o que também faz dele um inconfidente.

Curioso como tudo se relaciona em minha mente.

Como aquele jogo infantil de unir os pontos. Em um ponto tenho Jesus, que lutou pela liberdade dos homens. E que morreu por sonhar possível a liberdade. Em outro, Tiradentes, que, com a cara de Jesus, morre enforcado lutando pela liberdade. Em outro, eu, que luto pela liberdade de estar com minha filha na páscoa por um par de horas e sou impedido pela mãe de fazer isso em liberdade. Mesmo tendo ela de quinta a segunda para escolher a oportunidade conveniente. Tenho em outro ponto Joaquim, meu advogado, que pede que eu faça um boletim de ocorrência para comprovar que sou espera. Para comprovar que sou pai. Para comprovar que sou amoroso. Para comprovar que não tenho liberdade. Para comprovar que o mundo é doente.

E em outro ponto tenho a estátua, em outro o feriado, em outro os portugueses, em outro minha filha, em outro o povo, em outro as testemunhas da doença, da falta da liberdade e da ressurreição, em outro a fé.

A fé do artista leva a representação ao povo com ânsia de liberdade. A fé do povo faz o Cristo nascer de novo. A minha fé cura a doença do mundo, tira a corda do meu pescoço e tira minha filha da cruz.

Talvez o desenho que surja ao ligar os pontos seja o verdadeiro e definitivo rosto do Pai.




P.S.: Conheça a Casa de Olinda e o lindo trabalho de Leo Santana. A arte liberta a alma.

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