eu tinha muito a dizer



  1. Hoje, tentei, sem sucesso, falar com minha filha. 
  2. Ela não quis falar comigo. 
  3. Dizem que criança aprende com o exemplo. 
  4. Só estudei um semestre de lógica no curso de Filosofia. 


Vai aí o que eu gostaria de lhe dizer hoje, Beatriz:

Filha, 

quando você tiver quarenta anos, quais serão suas questões? Será que você já vai ter filhos? Será que terá constituído família? Será que família ainda será uma instituição como nos dias de hoje? Será que a valorização da família vai ser novamente importante? Ou será que não, que não existirá mais tal coisa, será que também a igreja, a crença, a fé, as virtudes terão mudado a tal ponto que não daremos mais valor aos pais, aos filhos, aos irmãos? Será que o conceito de humanidade vai sobrepor o conceito da família, tornando-nos todos partícipes da raça humana de uma maneira fraterna e igualitária? Ou será que nem este conceito será de possível apreensão, dado o caminho que percorremos hoje, quando o individualismo e o consumismo tomam proporções assustadoramente tristes e os desejos individuais sobrepõe os coletivos?

Será que vou estar vivo para responder eu mesmo a esta pergunta? 

Me pergunto se você vai se casar. Me pergunto se terá filhos. Se fará uma opção sexual condizente com sua felicidade plena. Se terá respeito aos mais velhos. Se gostará de crianças, se saberá dar valor ao Bem, ao Bom, ao Belo. Se será ligada em filosofia, em música, se gostará de boa música, ou se só fará a opção pelo que é ditado pelos meios de comunicação e a cultura de massa. Penso se a globalização não vai ter finalmente tornado possível a morte das identidades locais e se a pasteurização cultural não terá feito desse mundo um lugar mais pobre, mais triste, mais óbvio, mais feio. Fico em dúvida se as monoculturas, de forma geral, não tendem a propiciar não só a extinção de espécies vegetais e animais, mas lembro que no fundo, no raso, somos animais, sujeitos às novas bactérias, aos novos vírus. Penso que a diversidade faz com que uma bactéria não mate tudo. Penso que quando formos todos iguais, estaremos mais sujeitos a uma bactéria que ataque nossa espécie única.... mesmo que seja a bactéria do empobrecimento estético, filosófico, artístico e cultural.

Será que estarei vivo comemorando seus quarenta anos, filha? Será que você vai conhecer seu pai? Será que vai reconhecer seu pai?

Hoje, vivemos um tempo onde as pessoas só querem um abraço, filha. Quero que quando você tiver a minha idade, todos se sintam abraçados. Você, eu, todos. Se estivermos no mesmo abraço, melhor. Se não, será como hoje. Hoje, lhe abraço sozinho. Todos os dias, todas as noites. Todas as horas. Para um pai que sabe dos segundos e dos minutos, que tem o infinito tatuado em sua perna direita, a eternidade é um quarto conhecido. Um canto reconhecido.

Não me importa ser eterno, filha. Importa marcar eternamente o meu Caminho nos encontros que fizer, buscando o melhor de mim para ser doado em reflexão, atitudes, palavras, afeto. Porque para o universo, minha filha, um pé de alface e um boi são a mesma coisa. Para o universo, minha filha, seu pai, Fernandinho Beira Mar e o Papa são um só nada. Só posso ser melhor ou diferente, filha, para mim. Nem pra você não posso. Por que o “para você” não depende de mim. Depende de você. Por isso, sigo meus valores, acreditando em meu conceito de verdade e de justiça, de bem, de bom, de belo. Sigo pensando que paz é paz dentro ou fora de uma igreja. Coisa que você não pode aprender agora. Que certo é certo estando em Belo Horizonte ou Recife. E que errado é só uma escolha triste, às vezes sem saber, mas que pode transformar para sempre um Caminho de amor. 

Porque a vida é só a vida, Beatriz. Um nada oceânico com tormentas e calmarias em busca de um farol que nos dê a ilusão de esperança. O que importa mesmo é tentar navegar junto, aproveitando o sol quando vier, a descida de cada onda que fizer cosquinha em nossa barriga, o resquício de sal que fica nos lábios e nos fala do tempero daquilo que não provamos, mas sabemos que está lá.

As espumas das ondas adornam o mar com colares de pérolas fictícios e fugazes. Mas veja, são lindas. 
Há mar, filha. E só.

Do seu pai, que lhe ama em silêncio.


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