Do filho, do pai, pra mãe, do ano novo.










Mãe,
feliz ano novo.

Comi o bolo de chocolate que você deixou pra mim de presente quando viajou, o mesmo que você faz em todos os meus aniversários. Hoje tentei mais uma vez resolver as coisas todas, mas não foi possível. Nem sempre as pessoas sabem a importância da escolha em nossas vidas. Que as mesmas sementes quando plantadas, germinam ou não dependendo do terreno onde estão. Se tem água e luz.

Às vezes falta água, às vezes falta luz.

A iluminação é preciosa em todo o processo de germinação e crescimento.

Quantas escolhas erradas eu fiz, por falta de iluminação? Realmente não sei. Mas sei que todas as sementes que foram originárias das minhas escolhas, germinaram. Todas elas. As boas e as ruins. 

Não. Não estou dizendo que haviam sementes ruins. Estou dizendo que as escolhas foram boas ou ruins. As minhas. E isso fez toda a diferença, mãe.

Paro um pouco e imagino você fazendo o bolo de chocolate pra mim. Saiba que não ficou com pouca cobertura - como já imagino que você supôs. Hoje, quando compartilhei com todos os que comigo estavam, apenas disse do ingrediente mágico que você coloca em tudo que faz: seu carinho imenso. "Atenção para o ingrediente principal, que foi minha mãe quem fez!" - eu disse a eles.
E teve gente que achou que era chocolate. 

Só comi uma fatia, mãe. Precisei compartilhar, foi você quem me ensinou. Às vezes as pessoas não sabem a importância do compartilhamento na vida, mãe. Acham que compartilhar, é o mesmo que dar. Que dar e ficar sem. Não sabem que tem muita coisa na vida que quando a gente compartilha, 2 ficam com exatamente o mesmo tanto. Que multiplica. É assim com você e com meu pai. Compartilham o amor dos filhos. Os dois tem o mesmo tanto. Dobrado. Imagino como seria se vocês não pudessem compartilhar esse amor, o tanto que eu perderia com isso. Eu e minha irmã. Custei muito a entender que também podia compartilhar o amor de vocês com ela. Fui uma criança muito ciumenta. E esse ciume me prejudicou muito nas minhas escolhas, na minha vida. Perdi afetos, perdi sonhos, perdi amores verdadeiros por não saber compartilhar. 

Foi preciso ir para o Caminho de Santiago para que pudesse rever valores, entender o valor da escolha, descobrir o perdão, conhecer o pendão da vida. O que hasteamos e deixamos flamular conforme o vento. Me pergunto sobre a máxima de que a vida é o que nos acontece enquanto fazemos planos. Planos sim, escolhas não. A vida também é o que nos acontece quando fazemos escolhas. Escolhemos hastear nossos sonhos, valores, ritos, desejos, sabores. Eros que nos guarde. E que a alma nos conduza. Sempre, com bolo de chocolate. 

Na infância, na adolescência, na dor, na alegria, na fraqueza, na ousadia, no ciúme, no perdão, no entendimento, na compreensão, na compaixão, seu bolo de chocolate me fez companhia. Muleta semântica? Cajado poderoso? Viagra pro tesão de continuar vivo? Seu bolo de chocolate é mistério em mim, é reveillon, é apaziguar o aflito. É a virtude da doação, sem obrigação. Só comi uma fatia que me fez partilha. Só comi uma fatia que me fez parte. Só comi uma fatia que me faz pedaço de mim. Do mim tão seu, tão da minha filha, tão dos outros, tão mesmo uno com o mundo e com o desejo das coisas simples de viver... Vou viver Beatriz em meu colo, dedinhos de chocolate, os olhos de brigadeiro. "A luz do candeeiro"...

Só com o partilhar chocola-teia-se a alma, mãe. Teia enorme, que amplia-se em sonhos possíveis, sempre. Não vou passar o ano novo com vocês, mãe. Nem com minha irmã. Nem com minha filha. Nem com o amor da escolha. Mas escolho amar, independenteamante de qualquer coisa. 

Seu bolo é delicioso, minha mãe. Feliz dois mil e doce. Do seu filho, que é pai e filho.


Bê Sant'Anna.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Indico "A alma imoral" e "Ter ou não ter, eis a questão!"

Para Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque

Rascunho